Tratores Não São Política Pública: São o Retrato do Abandono Estatal
Por Adriano Nuvunga
Director do Centro para a Democracia e Direitos Humanos
O texto de António Matos tenta justificar o uso de tratores como transporte de pessoas nos distritos moçambicanos. Ainda que a proposta aparente criatividade, na realidade, representa um perigoso processo de normalização da precariedade e do abandono estatal. Essa retórica transforma uma urgência em improviso aceitável, mascarando desigualdades gritantes.
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Trator não é transporte público
Independentemente da boa intenção, tratores são equipamentos agrícolas, e não veículos de transporte de passageiros. Portanto, adaptá-los para transportar pessoas é aceitar, de forma resignada, que os cidadãos das zonas rurais não merecem os mesmos direitos que os das cidades. Além disso, essa prática institucionaliza a desigualdade em vez de combatê-la.
Improviso não é política pública
Embora se defenda a ideia de que os tratores são uma resposta transitória, essa alegação camufla o essencial: o Estado abandonou essas comunidades. Em vez de investir em infraestruturas viárias e em transporte público decente, o Governo apresenta o improviso como modelo de governação. Por conseguinte, trata-se de uma medida regressiva e insustentável.
Dignidade não é retórica
Dizer que “dignidade não é andar num veículo bonito” é, no mínimo, irónico. De facto, dignidade significa acesso a transporte seguro, regulado e confiável. Logo, substituir esse direito por uma carroçaria improvisada num trator equivale a desumanizar comunidades inteiras. Portanto, trata-se de uma afronta aos princípios mais básicos de justiça social.
Baixo custo, alto risco
A defesa do “baixo custo” ignora os custos ocultos: acidentes, ausência de seguro, exploração informal, e sobretudo, o risco à vida humana. Além disso, surge a inevitável pergunta: quem lucra com a venda destes tratores? Existe, possivelmente, um negócio camuflado por trás da suposta solidariedade com os pobres.
Improviso institucionaliza a miséria
É importante reconhecer a criatividade das comunidades. No entanto, essa criatividade não pode ser regulamentada como política pública. O papel do Estado deve ser eliminar o improviso e não aplaudi-lo. Afinal, quando o governo celebra a adaptação forçada dos pobres, perpetua a exclusão e a desigualdade.
Trata-se de escolhas políticas, não de contexto
O verdadeiro problema não é o trator. Em vez disso, o problema é a má gestão de prioridades. Afinal, há verbas para V8 nas capitais, voos executivos e comitivas luxuosas, mas não para transporte digno nos distritos. Portanto, essa decisão é política, elitista e altamente excludente.
Conclusão: o abandono como política
Em suma, aceitar tratores como solução é legitimar o fracasso do Estado. É a prova de que não existe plano, vontade nem respeito pelas comunidades periféricas. Aliás, transformar tratores em ambulâncias ou autocarros escolares não é inovação — é desespero oficializado.
Esse cenário revela um Estado cúmplice da desigualdade, que prefere manter os pobres em improviso eterno a investir em justiça territorial. Por isso, quem hoje anda de trator, é quem o Estado abandonou ontem.